spot_img
HomeMundoResidência fictícia deu cidadania italiana a brasileiros - 28/12/2025 - Mundo

Residência fictícia deu cidadania italiana a brasileiros – 28/12/2025 – Mundo

A cidade de Moggio Udinese tem cerca de 1.600 habitantes. Por ocupar um território de montanha, aos pés dos Alpes Julianos, que separam a Itália da Áustria, a maior parte das casas se concentra em poucas ruas. Duas delas são familiares, ao menos no papel, para mais de 80 brasileiros que tiveram a cidadania italiana reconhecida de 2018 a 2024.

Segundo investigação iniciada pela polícia e agora aos cuidados do Ministério Público, uma casa na Via Abbazia e outra na Via Traversigne foram indicadas de forma falsa como local de moradia de brasileiros que obtiveram a cidadania ali por direito de sangue. Os dois endereços ficam a cerca de 100 metros da prefeitura, responsável pelos processos.

Seis pessoas —quatro funcionários da administração municipal, um brasileiro e uma albanesa— foram indiciadas pelo suposto esquema. Uma notificação da Promotoria aos investigados, à qual a Folha teve acesso, diz que esse grupo “comprovava falsamente a existência”, nesses dois imóveis, de “situações de moradia habitual” para brasileiros descendentes de italianos. Com isso, garantia “o requisito legal necessário para a inscrição nos registros da população residente e, consequentemente, para o sucessivo pedido e obtenção do status de cidadão italiano iure sanguinis [direito de sangue]” para eles e seus filhos menores de idade.

No total, diz o documento, 83 brasileiros tiveram a cidadania reconhecida dessa forma, sem nunca terem residido de fato em Moggio Udinese. “Alguns até vieram [à cidade], mas poucos. Ficavam poucos dias, faziam turismo e iam embora”, disse à Folha o promotor Giorgio Milillo, de Udine, responsável pelo caso. A investigação aponta que os brasileiros que passaram pela cidade ficavam de dois a cinco dias, mas ainda é incerto quantos estiveram realmente lá.

No caso de Moggio Udinese, os beneficiados teriam forjado esse status de morador para poder dar seguimento ao processo. Segundo o Ministério Público, eles teriam pagado € 6.500 (R$ 41,3 mil) para conseguir a cidadania nesses moldes, incluindo o título de residência fictício. Não está claro como esse valor era calculado no caso de famílias numerosas ou com filhos. Esses brasileiros, porém, não são alvo da investigação.

O único brasileiro indiciado é Sergio Luiz Garana, 54, que seria residente na região do Vêneto, também no norte da Itália. Ele é apontado como proprietário de um dos imóveis utilizados como residência fictícia para seus compatriotas. Para os investigadores, Garana atuava com uma mulher de origem albanesa na organização do esquema.

A dupla, segundo a apuração, indicava à prefeitura as duas casas em Moggio Udinese como de moradia dos brasileiros, chamados nos autos de “clientes”. Depois, entregava em nome deles a documentação para obter a cidadania italiana, incluindo formulários com sinais de falsificação, e ajudava os clientes a organizar viagens breves para a Itália. Os dois mantinham relações “pessoais e constantes” com funcionários da prefeitura, ainda segundo a Promotoria.

Um indício de que as moradias na cidade eram simuladas, diz o Ministério Público, é que a documentação entregue à prefeitura continha “falsificações grosseiras” e “prazos incongruentes”. Foram identificados casos em que a emissão do código fiscal (equivalente ao CPF) ocorreu antes de os brasileiros chegarem à Itália, além de pedidos de cidadania sem data e com assinaturas “claramente falsificadas”.

Além disso, os policiais identificaram contratos de aluguel trimestrais com assinaturas de inquilinos falsificadas e com datas de assinatura e registro anteriores à suposta chegada dos brasileiros.

Na outra ponta do esquema, funcionários da prefeitura são suspeitos de forjar fiscalização da presença dos brasileiros nas duas casas apontadas como endereço de moradia. Um dos requisitos para a obtenção do certificado de residência é justamente a vistoria in loco de um agente. “Alguns [brasileiros] foram até checados, mas a grande maioria não”, diz o promotor Milillo.

Caso se tornem réus, os investigados responderão por crime de falsidade ideológica em documentos públicos. A pena é de um a seis anos de prisão, mas o agravante da reincidência pode triplicar a sanção.

A Folha procurou Garana e seu advogado, mas não obteve retorno. A reportagem encontrou nas redes sociais perfis em seu nome, nos quais ele aparece como “gerente geral” da empresa Cidadania Italiana Garana, em atividade desde 1997. O site está fora do ar, e um número de telefone italiano consta como inexistente. No Facebook, ao lado do nome aparece a inscrição “adeus”. Um dos advogados identificados na notificação do Ministério Público como defensor de Garana disse que não atua mais na área e indicou outro profissional. Em diversas tentativas, esse segundo advogado não atendeu ao telefone do escritório nem respondeu por e-mail.

Quem não mora na Itália deve encaminhar o pedido de cidadania por direito de sangue ao consulado do país em que vive. No entanto, diante de filas de espera que chegam a dez anos, como na representação italiana em São Paulo, passar um tempo no país europeu como morador se tornou uma alternativa para agilizar o processo, que, pelas regras, costuma levar cerca de seis meses.

Chamada de reconhecimento de cidadania por via administrativa, essa modalidade de residir por um tempo na Itália é regulada por normas do Ministério do Interior. Segundo circular de 1991, a condição de cidadão italiano deve ser “certificada pelo prefeito do município de residência”, e o procedimento só pode ser iniciado se o interessado estiver “registrado no cadastro da população residente”.

Quando alguém chega para morar na Itália ou muda de endereço internamente, precisa se registrar ou atualizar os dados na prefeitura. A comprovação oficial de endereço –exigida, por exemplo, para outros documentos ou acesso a serviços públicos– é feita com um certificado emitido pela prefeitura ou pelo Ministério do Interior.

A atual gestão de Moggio Udinese não está envolvida, mas a prefeita, Martina Gallizia, não quis dar entrevista. “Como a investigação está em andamento, prefiro não dar declarações”, escreveu por e-mail.

Para o promotor Melillo, o esquema poderia ter ocorrido em qualquer outra cidade pequena da Itália. “Elas têm menos funcionários e menos possibilidades de checagem interna. Em uma cidade maior, é mais difícil fazer isso com mais gente te fiscalizando.” A denúncia do Ministério Público e uma possível abertura de processo na Justiça devem ocorrer nos próximos meses.

Na lista daqueles que tiveram a cidadania reconhecida com essa modalidade, a reportagem identificou 19 brasileiros que seriam de uma mesma família, todos com sobrenome Floresi ou Florezi. São três gerações, com idades hoje de 6 a 71 anos.

No caso de 10 dos 19 nomes, as datas de declaração de residência e de inscrição na lista de moradores da prefeitura de Moggio Udinese são exatamente as mesmas dos pedidos da cidadania italiana, todas em 2019. A primeira pessoa teria sido registrada em janeiro, outras quatro em julho (todas no mesmo dia) e outras cinco em dezembro (também em um só dia).

Oito nomes na lista eram menores de 18 anos à época, o que sugere que seriam filhos dos adultos que obtiveram a cidadania e, por isso, teriam obtido o reconhecimento de forma automática.

Na média, as pessoas de sobrenome Floresi/Florezi conseguiram o certificado do status de cidadão italiano cinco meses após a data da declaração da suposta residência em Moggio Udinese. Com esse papel em mãos, eles podem fazer outros documentos, como o passaporte. Poucos meses depois, a residência desses brasileiros foi transferida para o exterior –os autos da investigação não indicam para onde.

A Folha falou por telefone e trocou mensagens com uma integrante da família que mora em São Paulo. Ela não quis dar entrevista e disse que o processo de cidadania foi feito de forma idônea. Tampouco respondeu a uma lista com 21 perguntas enviada pela reportagem sobre como foi o processo.

Fonte: Folha de São Paulo

RELATED ARTICLES

LEAVE A REPLY

Please enter your comment!
Please enter your name here

- Advertisment -spot_img

Outras Notícias