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Maduro e Igreja Católica se acusam de instrumentalizar fé – 16/11/2025 – Mundo

Sob pressão militar intensa dos Estados Unidos, que deslocaram tropas para perto da costa da Venezuela, fiéis do país sul-americano celebraram nos últimos dias a canonização dos dois primeiros santos nacionais. A cerimônia para lograr o feito, porém, foi cancelada após troca de acusações entre o ditador Nicolás Maduro e representantes da Igreja Católica, que se acusam de tentar instrumentalizar a fé.

O episódio escancara a tensão entre Caracas e a Santa Sé a despeito da manutenção de canais de diálogo em um contexto de acusações de fraude eleitoral e de violações sucessivas dos direitos humanos. Não à toa, Maduro cada vez mais se aproxima dos setores evangélicos como parte de uma estratégia, segundo especialistas, de fazer contrapeso à influência dos católicos, mais críticos ao regime, em todo o país.

Os agora santos José Gregorio Hernandez (1864 – 1919), popularmente conhecido como “médico dos pobres”, e Carmen Rendiles (1903 – 1977), freira que dedicou a vida à educação e ao trabalho social, são personalidades caras aos fiéis da Venezuela, país em que 7 a cada 10 pessoas (71,9%) se declararam católicos no ano passado, de acordo com a pesquisa mais recente do instituto Latinobarómetro.

Em relação a Hernandez, percentual semelhante da população (70%) disse acreditar nos milagres atribuídos a ele em levantamento divulgado em 2021 pelo Laboratório de Ciências Sociais da Universidade Central da Venezuela, e sua canonização era uma causa defendida pela igreja venezuelana havia 76 anos.

Provocou frenesi, portanto, a oficialização dos primeiros santos do país, em 19 de outubro. Milhares de pessoas, religiosas ou não, mobilizaram-se para acompanhar a cerimônia conduzida pelo papa Leão 14, no Vaticano. Pinturas e cartazes com a imagem de Hernandez e Rendiles foram espalhados pela Venezuela.

Em Caracas, o regime organizou vigílias para acompanhar a transmissão, que também contaram com a presença de líderes chavistas. E Maduro, referindo-se à tensão com os EUA, afirmou que o acontecimento tem “grande significado” num momento em que a Venezuela está “ameaçada pela maior potência militar da história”. Ainda elogiou Leão 14, afirmando que ele dá continuidade ao legado de seu antecessor, o pontífice argentino Francisco, que em fevereiro assinou o decreto de canonização do hospital.

Opositores, por sua vez, aproveitaram a visibilidade da cerimônia para exigir a libertação de presos políticos e denunciar a crise interna. Os protestos ganharam o endosso do cardeal venezuelano Baltazar Porras, crítico do chavismo. Em Roma, ele exortou a sociedade civil de seu país a seguir o exemplo dos santos e falou em erosão da liberdade, pobreza crescente, militarização da vida pública e uma “forma de governo que incita a violência, a corrupção e a falta de autonomia das instituições”.

Maduro reagiu e acusou Porras de conspirar contra as canonizações para enfraquecer o regime. Ao fim, nas palavras do ditador, o cardeal foi derrotado por Deus. Ataques contra o religioso também pipocaram nas redes sociais, chamando-o de golpista, lobo em pele de cordeiro e demônio que usa batina.

Sem clima para grandes festas, a Arquidiocese de Caracas então anunciou, de última hora, o cancelamento da cerimônia que ocorreria no dia 25 de outubro no Monumental, um estádio da cidade, para enaltecer as canonizações.

O argumento oficial, de que o número de interessados excedeu o limite da capacidade de quase 40 mil, causou estranhamento, já que as inscrições eram feitas online e, presume-se, autoridades poderiam controlar o acesso com facilidade. Nos bastidores, especula-se que o cancelamento acabou por preservar tanto regime quanto igreja após as acusações de que os santos são explorados para fins políticos.

Seja como for, o episódio evidenciou que as tensões entre o regime de Maduro e os católicos podem explodir a qualquer momento, afirma Tomás Straka, historiador e professor da Universidade Católica Andrés Bello, em Caracas. Ainda assim, acrescenta, os conflitos causaram surpresa, já que os dois lados se esforçam manter canais de diálogo e “coexistir da forma mais pacífica possível” depois de uma relação conflituosa no passado, quando o país era liderado por Hugo Chávez (1999 – 2013).

Foi durante o papado de Francisco, descrito por opositores de Maduro como um simpatizante do regime, que as tensões entre igreja e Estado arrefeceram por volta de 2018, ainda segundo Straka. “Parece que ambos os lados entenderam que não podiam controlar um ao outro, que não era possível derrubar o governo e também que não era possível controlar a igreja.”

E angariar o apoio de todos os setores, ou pelo menos evitar mais conflitos, tornou-se regra para o regime desde a eleição do ano passado na qual Maduro foi declarado vencedor a despeito de organizações internacionais apontarem indícios de fraude, o que ampliou crise relacionada à popularidade e aceitação, acrescenta o professor.

A igreja, por sua vez, busca preservar influência, por limitada que seja. Essa estratégia teria ficado evidente a poucos dias das canonizações numa declaração feita por Edgar Peña Parra. O prelado venezuelano e número dois da diplomacia do Vaticano falou em “diplomacia da reunificação” que a instituição diz promover na Venezuela devido à necessidade de “construir pontes” entre setores opostos.

O plano teria o objetivo de evitar um cenário de perseguição, como o que ocorre na Nicarágua sob o ditador Daniel Ortega. Em fevereiro, integrantes da Igreja Católica venezuelana manifestaram preocupação com as restrições à liberdade religiosa e com a possibilidade de os fiéis enfrentarem a perseguição vivenciada pelos nicaraguenses.

Hugo Hernáiz, professor de sociologia na Universidade Central da Venezuela, diz que a situação ainda é distante entre os países. “Mas tudo pode acontecer, porque o governo [venezuelano] está sempre procurando inimigos. A maneira como o governo conduz a política geralmente envolve encontrar bodes expiatórios em todos os lugares. Em algum momento, pode decidir que a hierarquia eclesiástica é sua inimiga.”

O regime de Maduro manteve a repressão mesmo às vésperas e depois das canonizações. A ONG Foro Penal registrou 21 novos presos políticos nos dias seguintes à cerimônia e pediu que o papa Leão 14 intercedesse pelas pessoas detidas. No total, mais de 800 pessoas estão nessas condições, segundo a organização.

Fonte: Folha de São Paulo

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