Em “Diálogos Sobre a Fé” (ed. Record), livro de conversas do jesuíta Antonio Spadaro com o renomado Martin Scorsese, o diretor oferece uma chave de leitura inesperada para sua própria obra. O livro permite uma releitura de toda a filmografia de Scorsese a partir da ideia de fé como tensão permanente entre culpa, desejo, violência e consciência moral. Não como dogma, resposta ou reconciliação. Trata-se menos de um ajuste espiritual tardio do que da explicitação de um conflito que sempre esteve ali, atravessando personagens, escolhas narrativas e a relação do cineasta com o mundo.
Essa leitura afasta o livro de qualquer interpretação devocional ou meramente biográfica. “Diálogos sobre a Fé” funciona como um instrumento crítico: ajuda a compreender por que o cinema de Scorsese nunca separou ética, violência e transcendência. A fé, ali, não é pacífica; ela desestabiliza.
A origem dessa tensão remonta à infância do diretor. Criança asmática, criada em Little Italy, em Nova York, Scorsese passou grande parte da infância impedido de brincar na rua. Tornou-se um observador: da janela de seu quarto, assistia à vida do bairro, aos rituais da comunidade ítalo-americana, à violência cotidiana, à devoção católica e às ambiguidades morais que mais tarde marcariam seu cinema.
Na obra, ao ser provocado por Spadaro a falar da asma, Scorsese associa a doença a um sentimento precoce de finitude. Conta que sua ansiedade cresceu junto com a consciência de que poderia não sair vivo daquela infância confinada. A casa, que fora refúgio, passou a ser sentida como fortaleza —e depois como prisão. A leitura e, mais tarde, o cinema tornaram-se então uma espécie de oração íntima, uma forma de organizar o medo, a culpa e a percepção constante da morte.
Os diálogos reunidos no livro não são ocasionais nem apressados. Estenderam-se ao longo de dez anos, num ritmo que explica sua densidade. É esse tempo longo que permite a Scorsese revisitar sua formação católica, a vocação frustrada ao sacerdócio e a maneira como a fé nunca desapareceu de seus filmes, ainda que jamais tenha se apresentado como resposta tranquilizadora.
Essa perspectiva ajuda a reler a obra do diretor. Em “Taxi Driver”, “Touro Indomável” ou “Os Bons Companheiros”, não há redenção que apague o mal cometido. Mesmo quando o tema religioso é explícito, como em “A Última Tentação de Cristo”, a fé surge como prova, dúvida e sofrimento. “Diálogos sobre a Fé” torna explícito esse fio condutor: Scorsese não filma a fé como solução, mas como conflito permanente.
A presença de Spadaro é decisiva para que o livro não se transforme em autojustificação. Intelectual jesuíta e editor da revista La Civiltà Cattolica, ele não conduz Scorsese à ortodoxia nem suaviza suas contradições. Insiste numa fé construída no atrito com a história, com o mal e com a responsabilidade individual. É nesse ponto que o livro ganha densidade: ao recusar qualquer tom catequético, transforma a religião em problema intelectual e estético.
O cinema de Scorsese não busca representar o sagrado, mas expor suas falhas, ausências e silêncios. A violência recorrente em seus filmes não é espetáculo nem glorificação: é sintoma de um mundo em que a transcendência nunca se resolve plenamente. A fé aparece como linguagem para lidar com a culpa, não como absolvição.
Não por acaso, a obra vem sendo lido com atenção também fora do circuito estritamente religioso, inclusive em espaços acadêmicos e culturais. No Brasil, o Instituto Humanitas Unisinos destacou justamente esse aspecto: a recusa de Scorsese em transformar a fé em resposta pronta, preferindo tratá-la como uma pergunta insistente.
“Diálogos sobre a Fé” interessa menos aos crentes do que aos inquietos. Aos leitores que reconhecem que, no cinema de Scorsese, a moral nunca é simples, a culpa nunca se dissipa por completo e a redenção, quando existe, é sempre precária. O livro não explica os filmes, mas ajuda a entendê-los melhor. E lembra que há artistas que seguem criando não para encontrar respostas, mas para formular perguntas cada vez mais difíceis.




