spot_img
HomeMundoBrasileiro sobrevivente do Elevador da Glória conta trauma - 09/09/2025 - Mundo

Brasileiro sobrevivente do Elevador da Glória conta trauma – 09/09/2025 – Mundo

Cinco dias depois, as mãos de Gustavo Scofano, 41, ainda exibem marcas nos dedos e nas costas, com pontos de sutura. O jornal Público encontrou o brasileiro nesta segunda-feira (8). Programador e distribuidor de cinema, ele vive em Portugal há oito anos e está entre os 23 feridos do acidente do Elevador da Glória, que deixou 16 mortos.

Por volta das 18h (14h de Brasília), Gustavo subia a rua pelo lado direito quando ouviu um estrondo. Pensou que fosse apenas uma trava do elevador que estava nos Restauradores. Continuou a caminhar até ver um senhor dar meia-volta —logo em seguida, percebeu o bondinho vindo em sua direção. A última imagem de que se lembra é a do homem se atirando ao chão. Num gesto instintivo, repetiu o movimento e conseguiu escapar.

O que se seguiu é relatado neste testemunho, em discurso direto, no qual Gustavo partilha sua visão sobre o que considera estar em causa neste acidente e sobre as decisões e escolhas de quem gere a vida coletiva na cidade.

No último dia 3, tive o azar de estar no lugar errado, na hora errada. Mais precisamente, na Calçada da Glória, a cerca de um metro ou um metro e meio do ponto onde o Elevador da Glória colidiu com um prédio, interrompendo sua trajetória de descarrilamento e transformando-se numa massa amorfa de metal, envolta por uma nuvem sufocante de poeira e estilhaços de vidro.

Desde então, meus dias têm sido um acúmulo de loopings de imagens, barulhos, sensações, cheiros e impactos corporais que ecoam daqueles segundos e parecem não ter fim. Os cortes, lacerações, pontos, suturas, curativos, hematomas, roxos, ardências e dores não ajudam a interromper o que começo a perceber como um círculo vicioso. Esses loopings, por vezes, se intensificam e acabam se transformando em ataques de pânico.

Ataques de pânico que só param quando me bate uma sensação de comiseração ao perceber que o mundo é maior do que os meus contornos físicos e psíquicos: pessoas morreram —muitas pessoas, e no exato momento em que percebi que eu mesmo não tinha morrido.

Essa confusão mental não passa e se expande ainda mais quando não resisto ao impulso de ler as notícias e tentar entender melhor o que aconteceu na quarta-feira. A confusão aumenta e toma contornos ainda mais insuportáveis ao ler detalhes sobre o cabo, sobre o contrapeso, sobre os 263 dias de vida útil do cabo, sobre o trambolho, sobre os 60 km/hora, sobre as três picadas na luva durante os testes do cabo, etc. Essas explicações e suposições mecânico-físicas parecem não me ajudar a entender melhor o que aconteceu. Muito pelo contrário, elas não fazem sentido algum para mim por si só. E mais: elas não explicam a sensação de culpa por ter sobrevivido.

Entretanto, continuo a peregrinação pelas notícias num exercício de masoquismo, e a minha cabeça finalmente consegue começar a encontrar algum vestígio de clareza, de pistas, de indícios.

Leio os textos novos e antigos deste jornal sobre as terceirizações, sobre desinvestimentos, sobre as manutenções de 24 horas que passaram a ser de 30 minutos, sobre o aumento exponencial na frequência de uso diário de redes de elevadores da Carris em comparação com a continuidade dos mesmos padrões e modus operandi… Isso sem citar os documentos e relatórios disponibilizados nos últimos dias. E, finalmente, sou tomado por algo análogo a uma sensação de calma.

Percebo que eu não estou louco. Não há esoterismo, falha mecânica ou ação divina. A questão não é a improbabilidade da minha presença naquele local —que não costuma de todo fazer parte da minha vida em Lisboa nos últimos oito anos— ou naquela hora em que era para estar fazendo um sem número de outras coisas.

O ponto nevrálgico deste episódio está nesse cosmos já muito familiar da vida lisboeta atual: as decisões, as escolhas e as atitudes de quem gere a vida partilhada na cidade. Escolhas de ordens políticas, institucionais, orçamentais, sociais que nos chocam e nos dessensibilizam há dias, semanas, meses, anos. Em Lisboa, em Portugal, no mundo. Aliás, no mundo não, em Lisboa. Estou falando sobre Lisboa, sobre a Calçada da Glória.

Não há acidente aqui; ousaria dizer até que, no limite, não há nem imprevidência. São prioridades, são escolhas. É macro.

Neste microcosmos sobre o qual aqui me debruço fica apenas um anteparo frente a este descalabro social, esse verdadeiro cada um por si e Deus nos acuda: os profissionais do Estado que estão longe dos locais de decisão e que absorvem o resultado destas decisões irresponsáveis, cruéis, e que, ainda assim, parecem ser capazes de abrandar os golpes contra os alicerces e garantias mínimas do viver em sociedade com dignidade e segurança.

Estou falando das enfermeiras, médicas, bombeiros, socorristas e trabalhadores da saúde que me atenderam na rua, no hospital e nos centros de saúde por onde passei nos últimos dias, sendo sempre tratado com absoluto cuidado, profissionalismo, atenção e calor humano. Não há palavras que consigam explicar exatamente a minha sensação sobre isto. Penso que nunca serei capaz de qualquer agradecimento à altura daquelas pessoas todas que cuidaram de mim e de tantos outros.

Não saberia, tampouco, falar das dezenas de pessoas que me acudiram nas ruas com água, toalhas, palavras e toques. Realmente não sabia que seria possível receber abraços de desconhecidos enquanto coberto de sangue, em 2025, nos Restauradores.

Sou uma pessoa muito reservada e avessa a qualquer tipo de exposição pública. Mas me vi obrigado a compartilhar estas palavras ao acompanhar as indignas e absurdas declarações públicas que ecoaram neste fim de semana em torno de responsabilizações, demissões, imputação de erro ou sobre onde e quem foge. Isto tudo no meio de tanto luto, dor e desamparo. É mais destemperança do que a minha cabeça consegue aguentar neste momento.

Do lugar onde estou agora, ler as falas e atitudes desses últimos dias —de caráter francamente eleitoral e às custas do terror alheio — suscita em mim sentimentos que não deveria estar tendo nesse momento. E não me atrevo nem a pensar no que suscita nos familiares e pessoas próximas às vítimas fatais do dia 3.

No entanto, seguindo essa lógica, me parece que as atitudes (ou a falta delas) que levaram a essa situação nunca tiveram o interesse, o bem-estar ou a segurança das pessoas como norte. Isso está muito claro.

Fonte: Folha de São Paulo

RELATED ARTICLES

LEAVE A REPLY

Please enter your comment!
Please enter your name here

- Advertisment -spot_img

Outras Notícias